Читать онлайн книгу "Polly!"

Polly!
Stephen Goldin






POLLY!



Uma novela escrita por

Stephen Goldin



Publicada por Parsina Press (http://www.parsina.com/)

Tradução publicada por Tektime


Polly! Copyright 2008 por Stephen Goldin. Todos os direitos reservados.

Copyright da arte da capa korhan hasim isik.



TГѓВ­tulo original: Polly!

Tradutor: InГѓВЄs Nascimento Wellnitz


Dedicado a todas as deusas

—passadas, presents e futuras—

que foram parte da minha vida




Primeiro Acto


Acordou a tossir.

Inicialmente confuso – de onde vinha aquela tosse? - rapidamente se apercebeu do cheiro. Fumo. O ar estava negro com tanto fumo; denso, ardente, a rodopiar pelo quarto em ondas ameaçadoras.

Depois foi o barulho: um rugido, como um comboio a alta velocidade, mas diferente. Talvez como um furacão ou um tornado, uma deslocação de ar tão violenta que o seu barulho era quase ensurdecedor. Doíam-lhe os ouvidos, talvez de uma mudança na pressão do ar.

E entГѓВЈo ele percebeu o que ГѓВ© que aquele som lhe fazia lembrar: o rugido de uma fornalha de tamanho industrial.

Fogo!

Por fim os olhos abriram-se subitamente - um grande erro, jГѓВЎ que comeГѓВ§aram imediatamente a arder e a chorar. O fumo e a cinza tornavam quase impossГѓВ­vel ver o que quer que fosse, e a tosse tornava quase impossГѓВ­vel respirar.

Fogo, o pior pesadelo de qualquer dono de uma livraria; e mais ainda de um que vive no andar por cima da loja. NГѓВЈo se viam chamas no quarto, e portanto ele deduziu que sГѓВі houvesse fogo ainda no piso de baixo. A devorar-lhe o ganha-pГѓВЈo.

Barbara! Acordar a Barbara!

Foi entГѓВЈo que se lembrou que jГѓВЎ nГѓВЈo havia nenhuma Barbara para acordar. Ela tinha-o deixado uns dias antes. Era sГѓВі ele.

Parte dele interrogou-se sobre o sentido de fazer alguma coisa; podia simplesmente ficar aqui, morrer e resolver assim todos os seus problemas. Mas a outra parte, aquela com um instinto de sobrevivГѓВЄncia, foi mais forte.

O que ГѓВ© que sempre se recomenda em caso de incГѓВЄndio? O fumo sobe; por isso, rasteja-se pelo chГѓВЈo para evitar respirГѓВЎ-lo. Mas serГѓВЎ que era a mesma coisa quando o fumo vinha do andar de baixo?

Ele rolou da cama até ficar de joelhos no chão e começou a rastejar; depois parou. Para que lado ficava a janela? Não se via nada. Ele sabia em que posição estava a janela em relação à cama, mas o cérebro parecia ter desligado. Também já não conseguia lembrar-se para que lado tinha rolado da cama: esquerda ou direita? Estava a aproximar-se da janela ou a afastar-se dela?

Ouviu-se o partir de um vidro à sua frente: óptimo, estava a ir na direcção certa. Uma voz gritou: “Está aqui alguém?”

Ele tentou gritar em resposta, mas tinha os pulmões tão cheios de fumo que a única coisa que saiu foi uma tosse seca. Mas isso foi o suficiente para o bombeiro que tinha vindo buscá-lo. “Já o ouvi. Estou a caminho.”

Logo a seguir o bombeiro agarrou-lhe o braço, ajudou-o cuidadosamente a levantar-se e levou-o até à janela. Estava uma escada encostada à parede do lado de fora. “Acha que consegue descer?”, perguntou. Ele acenou com a cabeça em resposta.

“Há mais alguém aqui?”, foi a pergunta seguinte.

Desta vez ele abanou com a cabeça. “Sou só eu”, respondeu, com voz rouca.

Estava outro bombeiro na escada que, juntamente com o colega, o ajudou a descer, ainda a tremer. JГѓВЎ no chГѓВЈo, teve subitamente frio. Apesar ser Julho, a noite estava fresca, e ainda mais fresca parecia depois do forno que tinha sido o quarto. Ainda para mais estava sГѓВі de cuecas. Eram a ГѓВєnica roupa com que dormia, e por isso eram a ГѓВєnica coisa que tinha vestido. Felizmente um dos bombeiros viu-o a tremer e embrulhou-o numa manta. AlguГѓВ©m lhe trouxe um fato de treino demasiado grande, que ele vestiu imediatamente; mais alguГѓВ©m lhe passou uma garrafa de ГѓВЎgua.

Ele virou-se para contemplar o incГѓВЄndio, e viu, impГѓВЎvido, como o fogo lavrava pelo prГѓВ©dio acima. As chamas faziam um belo efeito contra o breu da noite. De vez em quando, mais para ter algo para fazer do que por ter sede, bebia um pouco de ГѓВЎgua.

Toda a sua vida estava a ser devorada pelas chamas - bom, pelo menos tudo o que ainda nГѓВЈo tinha metaforicamente ardido apenas uns dias antes.

Ali estava ele, imГѓВіvel no meio do reboliГѓВ§o - todos corriam ГѓВ  sua volta fazendo todo o tipo de coisas, uns com machados de bombeiro, outros tentando extinguir o fogo com ГѓВЎgua, outros ainda mantendo os expectadores a uma distГѓВўncia de seguranГѓВ§a. Nada daquilo o afectava muito; era como se ele, de facto, jГѓВЎ se tivesse ido embora. Era como se as imagens, os sons, os cheiros se sucedessem a uma velocidade vertiginosa, mas do outro lado de um telescГѓВіpio virado ao contrГѓВЎrio. Nada daquilo era real. Nada daquilo tinha a ver directamente com ele. Uma mulher parou por um instante e falou-lhe. Disse-lhe que era da Cruz Vermelha, perguntou-lhe se ele tinha onde ficar e deu-lhe um cartГѓВЈo de uma casa de abrigo que o acolheria por uma ou duas noites se ele precisasse de algum tempo para tomar providГѓВЄncias para o futuro e organizar algumas coisas.

As chamas foram morrendo lentamente. Alguém lhe disse que o primeiro andar tinha ficado praticamente destruído, mas que se tinham salvado algumas coisas dele do segundo andar: a carteira, uma cómoda com algumas roupas, o telemóvel. Numa primeira análise, o fogo parecia ter tido origem num problema eléctrico, e não havia suspeita de acção criminosa.

A determinada altura ele devia ter ido atГѓВ© ao abrigo, embora nГѓВЈo se conseguisse lembrar de o ter feito. Lembrava-se de ter acordado lГѓВЎ, de sair pela porta da frente, quase num trance, e descer a rua atГѓВ© a um Multibanco para levantar algum dinheiro das suas magras poupanГѓВ§as e comprar o pequeno-almoГѓВ§o. Mastigou e engoliu a comida sem lhe saber a nada - podia atГѓВ© ter comido papel que nГѓВЈo tinha feito diferenГѓВ§a nenhuma...

O resto do dia passou-o no mesmo estado de espГѓВ­rito. Foi ao que restava do apartamento buscar as poucas roupas que se salvaram e guardou-as em sacos de plГѓВЎstico de supermercado. Contactou o agente de seguros, que lhe deu as condolГѓВЄncias antes de lhe recordar que, embora a maior parte do valor do negГѓВіcio estivesse coberto, os valores pessoais nГѓВЈo estavam. Ele saiu do escritГѓВіrio com uma pilha de papelada para preencher e devolver assim que estivesse pronta.

Passou essa noite numa pensão barata, sem relembrar nada do que tinha acontecido. Quando acordou, a realidade começou a penetrar lentamente na sua consciência. Ia ter de arranjar onde ficar, já que não tinha dinheiro para continuar a viver numa pensão. Tinha de fazer o ponto da situação, avaliar o que lhe sobrava; pelo menos isso ia ser rápido, já que não havia muito para inventariar.

Para onde havia de ir? O irmГѓВЈo tinha um rancho no Nevada e estava sempre a convidГѓВЎ-lo para o ir visitar. Era uma boa ideia, pensou ele.

Começou algumas vezes a marcar o número do irmão para o avisar de que ia ter com ele, mas desistiu sempre antes de estabelecer a ligação. Isto não era uma história que se contasse por telefone. E se ele entrasse em choque e não conseguisse falar, se de repente se apercebesse realmente do que se tinha passado e ficasse pregado ao chão, sem conseguir reagir? Não, era melhor ir até lá e fazer uma surpresa ao irmão. Quem sabe, talvez a viagem o ajudasse a pôr alguma ordem nas suas próprias ideias. Atirou os poucos pertences que tinha para dentro do seu Toyota e começou a conduzir em direcção a nascente.




Segundo Acto


A viagem comeГѓВ§ou tranquilamente: sair da cidade para apanhar a auto-estrada era simples. O dia estava quente e o ar condicionado estava avariado, mas o sistema 4-90 - 4 janelas abertas a 90 km/h - ajudava a suportar o calor. O carro nГѓВЈo tinha leitor de CD, mas a rГѓВЎdio estava a passar boa mГѓВєsica, rock clГѓВЎssico. Ao menos isso. Enquanto ele se concentrasse no que estava a cantar, nГѓВЈo pensava naquilo em que nГѓВЈo queria pensar.

Era de manhГѓВЈ e estava na hora de ponta. Ainda havia muito trГѓВўnsito no sentido oposto, mas nenhum no dele: estava a conduzir no sentido contrГѓВЎrio ao de toda a gente, para fora da cidade. NГѓВЈo havia nada que o obrigasse a abrandar. Mudou depois de auto-estrada, passando de quatro faixas para duas. O ГѓВєnico trГѓВўnsito que havia era ainda sГѓВі no sentido oposto, o que significava que ele podia conduzir ГѓВ  vontade. Carregou no acelerador e o barulho do vento aumentou, abafando a mГѓВєsica e levando-o a aumentar o volume do rГѓВЎdio.

A estrada ainda seguia para nascente por cima das colinas e descia depois para o vale central da CalifГѓВіrnia, quente e abafado. Este era um sГѓВ­tio onde sГѓВі os tolos - ou os desesperados - se aventuravam no VerГѓВЈo sem ar condicionado. Ele nГѓВЈo sabia ao certo em qual das categorias se enquadrava.

As colinas, que ele tinha deixado para trás, bloqueavam-lhe o sinal do rádio, que começou a falhar. Mesmo aumentando o volume se ouvia muito pouco, e era mais estática do que música; começou então a carregar no botão à procura de outra estação. Passou umas quantas à frente - desporto, um comentador qualquer claramente a tentar espicaçar os ouvintes - e uma estação onde estavam a falar em espanhol. Tentou mudar para FM, mas quase não havia recepção, por isso voltou para AM e acabou por encontrar uma estação que tocava música variada, de oldies a rock clássico. Não era má, embora fosse demasiado calma para o seu presente estado de espírito.

A temperatura estava agora a aumentar rapidamente. O vento era tão quente quanto o ar dentro do carro, e ele começou a transpirar. Parou numa estação de serviço, atestou o depósito e comprou garrafas de água que, pensou ele, deviam ser suficientes para bastante tempo. A primeira bebeu-a em meia hora; e transpirou no mesmo espaço de tempo quase a mesma quantidade de água. Abriu a segunda garrafa e despejou parte dela na cabeça, o que o ajudou a reduzir a temperatura para os limites do razoável.

Depois de sessenta quilГѓВіmetros nisto, apanhou uma saГѓВ­da para uma auto-estrada com duas faixas de rodagem, quase vazia; tinha a estrada sГѓВі para si. O relГѓВіgio marcava dez e meia. NГѓВЈo estava a correr mal. Se continuasse assim talvez conseguisse atГѓВ© chegar ao rancho antes de escurecer - e de certeza que chegava antes de jГѓВЎ estarem todos a dormir.

A paisagem estava a mudar lentamente e os campos agrícolas bem cultivados estavam a dar lugar a uma zona árida, de mato e vegetação baixa. As montanhas no espelho retrovisor encolhiam à medida que ele se aproximava do centro do vale.

Também esta estação de rádio estava a começar a falhar, agora com interferências de uma outra estação local, que orgulhosamente anunciava que tocava ambos os tipos de música, country e western. Na escala de preferências dele esses estavam só um ponto acima de rap, que por sua vez estava só um ponto acima de estática. Ouviu portanto com pouco interesse os acordes doloridos da música; mas depois de três cantores diferentes cantarem três canções de sofrimento sobre a mulher que os deixou, ele desligou o rádio, irritado, e continuou a conduzir em silêncio.

Percebeu rapidamente que tinha sido um erro. Nos vinte quilГѓВіmetros seguintes o pensamento dele ganhou asas e voou para longe. O IRS. Barbara. O incГѓВЄndio. A loja. Barbara. Impostos. Fogo. AtГѓВ© mГѓВєsica country era melhor do que isto.

A temperatura continuou a subir. Ele bebeu o resto da água da segunda garrafa e voltou a despejar uma parte da terceira garrafa na cabeça, mas desta vez não resultou tão bem. Pelo menos ele tinha estofos de tecido em vez daquela imitação barata de couro: conduzir com a pele a colar-se naquele material a ferver teria sido muito pior, e a viagem já estava a ser suficientemente desconfortável.

Olhou para o assento do lado: a pilha de papéis do seguro seguia lá viagem, com um dos sacos de roupa a servir de pisa-papéis. Ele tinha dado uma vista de olhos aos formulários quando o agente de seguros lhos tinha entregado, e eles queriam toda a espécie de informação, provavelmente até o nome de solteiro do pai e o signo do avô. Tinha havido um incêndio, pelo amor de Deus! A maior parte dos seus documentos tinha perecido. Como é que eles esperavam que ele lhes pudesse dar informação sobre as finanças do negócio se toda a informação tinha ardido?

NГѓВЈo. Esta nГѓВЈo era a altura certa para pensar nisso. Era altura de ouvir mГѓВЎ mГѓВєsica country e meditar enquanto conduzia pelo deserto.

O ponteiro do velocГѓВ­metro passou os cento e trinta quilГѓВіmetros por hora. Sem trГѓВўnsito na estrada, nГѓВЈo havia nada que o impedisse de acelerar; e era pouco provГѓВЎvel que a polГѓВ­cia se interessasse por ele numa auto-estrada deserta.

Nesse preciso momento, viu outro carro a dar-lhe sinal de luzes. Encostou, a vociferar. Já conhecia o procedimento: pegou nos documentos do carro e na carta de condução e entregou-as ao agente da polícia, que lhos devolveu juntamente com uma multa, tudo de forma muito civilizada; quinze minutos depois já estavam ambos de volta à estrada.

A temperatura estava agora a subir mesmo a sГѓВ©rio. Ele despejou o resto da terceira garrafa de ГѓВЎgua na cabeГѓВ§a e quase que a sentiu evaporar-se ao tocar-lhe na pele. Bebeu depois a quarta garrafa de um sГѓВі trago, o que nГѓВЈo ajudou grande coisa. Parou entГѓВЈo numa pequena bomba de gasolina que anunciava ser a ГѓВєnica nos prГѓВіximos cem quilГѓВіmetros e atestou de novo o depГѓВіsito. A gasolina era carГѓВ­ssima e ele estava a ficar sem dinheiro, mas com o azar com que andava nestes dias, era melhor nГѓВЈo arriscar a alternativa.

Uns minutos depois começou a perder o sinal da estação de rádio country, e começou desesperadamente à procura de outra, mas a única coisa que conseguiu encontrar ali, no meio do nada, foi uma estação religiosa. Porque diabo estava uma estação destas a transmitir a meio de um dia de semana? Nem sequer era domingo. Não era suposto estas rádios limitarem-se a transmitir pela noite dentro, quando não havia perigo de incomodar gente decente?

"Estes eeee-volucionistas herГѓВ©ticos querem convencer-vos de que foi tudo um acidente", dizia o pregador. "Se encontrasses um relГѓВіgio no meio de um campo, dizias 'que estranho, todas estas peГѓВ§as de metal se juntaram por acaso no meio de um campo de maneira a poderem marcar o tempo'? Que conclusГѓВЈo tГѓВЈo estГѓВєpida, ridГѓВ­cula, sem sentido, asinina, bronca, tola, palerma! Ou ias achar que alguГѓВ©m tinha construГѓВ­do esse mecanismo complexo com um objectivo em vista? Um relГѓВіgio vem de um relojoeiro, tГѓВЈo certo como a noite segue o dia!"

"Pois", disse ele irritado na direcção ao rádio, "um relojoeiro imbecil que, ou não sabe, ou não quer saber se deixa um relógio no meio de um campo estúpido qualquer. Se calhar foi o dono que o perdeu ou o deitou fora porque não funcionava em condições. Então e se deixasses uma barra de ferro no tal campo e voltasses uns meses depois e a encontrasses coberta de um pó vermelho? Achavas que alguém a tinha pintado, não? Ou achavas que tinha enferrujado, seu cretino!"

Mas o pregador do rГѓВЎdio ignorou-o. "O que esta gente nГѓВЈo consegue discernir ГѓВ© que tudo ГѓВ© parte de algo maior, algo tГѓВЈo grande que nГѓВіs nГѓВЈo conseguimos ver todos os detalhes. O plano de Deus ГѓВ© tГѓВЈo grande que nos envolve como um cobertor, quente e macio. O plano de Deus ГѓВ© vasto e existe para todos nГѓВіs, e todos temos um papel nele."

"O plano de Deus inclui reduzir a minha loja a cinzas?", disse ele, agora a gritar para o rГѓВЎdio. "Deus quer que eu fique na rua e na bancarrota? E o IRS, tambГѓВ©m ГѓВ© alguma parte obscura do plano de Deus? Deus precisa assim tanto dos meus oito mil dГѓВіlares? Faz parte do plano de Deus passar-me uma multa? Ou fazer com que a Barbara me deixasse? O que ГѓВ© que o plano de Deus me traz? Onde raio estГѓВЎ esse cobertor de amor e conforto? ГѓВ‰ um cobertor todo comido pelas traГѓВ§as, ГѓВ© o que ГѓВ©!" Bateu furiosamente no botГѓВЈo do rГѓВЎdio para o desligar. O suor na sua cara misturava-se com lГѓВЎgrimas, fazendo-lhe arder os olhos e dificultar a visГѓВЈo. Se houvesse trГѓВўnsito podia ter havido problemas, mas nГѓВЈo havia ninguГѓВ©m ГѓВ  vista com quem ter um acidente, e ele lГѓВЎ conseguiu manter o carro na estrada.

AtГѓВ© o silГѓВЄncio, atГѓВ© os prГѓВіprios pensamentos eram melhores do que ouvir aquele lixo, mesmo que fossem pensamentos de raiva, confusos, depressivos e desesperados. Ao menos eram os pensamentos dele, e nГѓВЈo de um aldrabГѓВЈo hipГѓВіcrita qualquer.

Ele acabou com a ГѓВЎgua mais depressa do que esperava, bebendo metade e despejando a outra metade na cabeГѓВ§a. Mas serviu de pouco; ainda estava um calor insuportГѓВЎvel.




Terceiro Acto


A princГѓВ­pio ele pensou que fosse uma miragem; mas como a imagem estava bem definida e aumentava de tamanho ГѓВ  medida que ele se aproximava, devia ser real. Tratava-se uma mansГѓВЈo grande de pedra branca brilhante. As filas de janelas, uma em cada andar, reflectiam o sol da tarde. A entrada estava protegida por um alpendre comprido suportado por colunas de mГѓВЎrmore branco, e em frente da casa havia um relvado rectangular que contrastava com o deserto estГѓВ©ril a toda a volta. Ele conhecia esta estrada e nГѓВЈo se lembrava de nenhuma casa como esta, mas a ГѓВєltima vez que tinha passado aqui jГѓВЎ tinha sido hГѓВЎ alguns anos, e nГѓВЈo era de admirar que as coisas tivessem mudado entretanto.

A casa ficava cerca de trinta metros afastada da estrada, com a entrada de frente para esta. À volta era tudo plano, sem nada que quebrasse a monotonia da paisagem à excepção de algum mato aqui e ali e alguns cactos solitários; até as montanhas, uma constante da paisagem californiana, eram apenas uma sombra azul no horizonte distante.

Ele estava demasiado concentrado na própria desgraça para perder muito tempo a pensar na casa. Era como se uma nuvem negra ensombrasse tudo o resto, e assim ele ignorou a mansão e continuou a conduzir. Ou, pelo menos, era essa a sua intenção. Do nada, o motor começou a falhar e parou, e o velho Corolla foi perdendo velocidade até parar quase em frente à rampa de acesso à casa. Ele só conseguiu conduzi-lo até à berma de maneira a não estar no meio do caminho de outros carros que viessem atrás dele - não que houvesse grande probabilidade de isso acontecer.

O ponteiro da gasolina mostrava o depósito pela metade. Ele rodou a chave na ignição algumas vezes, mas tudo o que se ouviu foi um ruído lamuriento. "Porra!", gritou ele para o carro, a dar murros no volante. "Porra, porra, porra, porra, porra! Porquê eu? E tinha que ser agora? Eu sabia que não devia ter confiado nesta lata velha para fazer uma viagem destas!"

Atirou um olhar quase enojado para a papelada da seguradora no assento do pendura debaixo do saco com roupa, saiu do carro e atirou furioso com a porta. Abriu o capot para examinar o motor, mas era um gesto fГѓВєtil - ele nГѓВЈo percebia nada de motores, nГѓВЈo fazia ideia do que procurar e ainda menos ideia fazia de como reparar o que quer que fosse que por acaso encontrasse.

Olhou impacientemente para o relógio: meio-dia e trinta e cinco. Estavam de certeza quase quarenta graus, a temperatura ainda ia subir à medida que o dia avançasse, e não havia uma brisa que fosse. Ele ia ter de fazer alguma coisa se queria chegar ao rancho antes de a noite cair. Tirou o telemóvel do bolso, mas não ia ser grande ajuda - não tinha rede. Também, quem é que ia construir uma torre de telecomunicações no meio do nada para lebres e coiotes? Atirou o telemóvel para o deserto com toda a força que tinha. "Não prestas para nada!", gritou ele. "Serves para quê, afinal? Para que é que serve isto tudo?" Deu um pontapé de frustração no carro e engoliu um soluço. "Para que é que serve isto tudo?"

O que ele queria realmente fazer era entrar para o carro e enrolar-se no banco de trГѓВЎs e choramingar; quem sabe atГѓВ© chuchar no dedo, tal como um bebГѓВ©, e o universo podia seguir o seu caminho e deixГѓВЎ-lo para trГѓВЎs. Era capaz de ser melhor isso do que o que tinha andado a fazer atГѓВ© agora.

Olhou entГѓВЈo para cima, para a mansГѓВЈo. Pelo menos podia pedir para usar o telefone deles e chamar a AssistГѓВЄncia em Viagem; se bem que, com o azar dele, provavelmente nГѓВЈo estaria ninguГѓВ©m em casa...

Olhou entГѓВЈo para as suas roupas. Apesar de ter despejado vГѓВЎrias garrafas de ГѓВЎgua por si abaixo, o calor do deserto jГѓВЎ as tinha secado. ГѓВЂ falta de um pente, passou os dedos pelo cabelo e meteu pelo acesso ГѓВ  casa, contente por, pelo menos, nГѓВЈo ser uma noite escura de tempestade, porque aГѓВ­ podia atГѓВ© estar a entrar no covil do DrГѓВЎcula ou do Frank N. Furter ou alguГѓВ©m do gГѓВ©nero.

Tão absorvido ia ele nestes pensamentos tenebrosos que já estava quase a meio do acesso à casa quando viu o boneco de neve no relvado junto ao alpendre. Tinha de ser uma daquelas decorações de Natal de plástico, pensou. Alguém tinha um sentido de humor muito especial, deixar uma coisa assim cá fora no meio de Julho; ou então alguém era muito preguiçoso para ir arrumar o boneco, uma das duas.

Mas, à medida que se ia aproximando, o boneco parecia cada vez mais feito de neve a sério. Era um boneco tradicional, com três bolas de neve, umas em cima das outras, a de baixo quase um metro de diâmetro, a do meio pouco mais de meio metro e a da cabeça um palmo e meio mais pequena. Os olhos eram duas ameixas pretas, o nariz era um pickle de pepino e a boca era feita de cerejas alinhadas num sorriso. Tinha ainda um cachecol amarelo e vermelho a marcar o pescoço e, na cabeça, em vez do tradicional chapéu alto, um boné de basebol dos Oakland A. Os braços eram magricelas para o corpo rechonchudo - eram feitos de dois paus espetados nos ombros. Ele avançou até ao boneco de neve e tocou-lhe: estava frio. Era mesmo feito de neve verdadeira, e estava aqui neste relvado com quarenta graus debaixo do sol escaldante do deserto em pleno mês de Julho. Recuou então devagar, sem conseguir tirar os olhos do boneco, que ali estava, impávido e sereno, claramente sem qualquer intenção de se deixar derreter.

Por fim, sacudiu a cabeГѓВ§a rapidamente para afastar daqui o pensamento; havia muitos outros assuntos mais prementes de momento. Subiu assim os quatro degraus atГѓВ© ГѓВ  varanda, aproximou-se da grande porta da frente, e tocou ГѓВ  campainha.

A porta abriu-se passados alguns segundos e ele deu por si a olhar para a mulher mais bonita que alguma vez tinha visto. Era baixa – ele media só um metro e setenta, e ela mal lhe chegava ao nariz – mas essa era a única coisa que ele talvez pudesse ter considerado menos perfeita nela. Tinha proporções perfeitas, nem demasiado voluptuosa, nem demasiado maria-rapaz. O cabelo castanho-escuro, cortado curto, emoldurava um rosto também perfeito, com olhos castanhos brilhantes, um nariz atrevido e uma boca pequena e cheia de vida. Vestia uma espécie de macacão comprido preto de cetim. As calças eram largas e fluidas; a parte de cima eram duas faixas de tecido que partiam da cintura, subiam pelo tronco e atavam atrás do pescoço. Estava a usar sapatos de salto baixo pretos e as costas estavam nuas. Não era magra como algumas modelos, mas não se lhe via um pingo de gordura. Usava uma corrente fina de ouro ao pescoço, com um medalhão grande de vários centímetros de largura com pelo menos uma dúzia de luzinhas que acendiam e apagavam. Não parecia ter muito mais de vinte anos.

Ele estava tão ocupado a admirá-la que quase se esqueceu do motivo porque tinha tocado. “Hum, desculpe incomodá-la, mas o meu carro avariou-se na estrada ali à frente, e eu pensei...”

“Bem, não fique aí fora nesse forno”, disse ela, fazendo-lhe sinal para entrar. “Venha para dentro, o ar condicionado está ligado e está muito mais agradável. Bem-vindo à Casa Verde.”

“Obrigado”, disse ele, entrando. Ela fechou a porta, e ele deliciou-se com a temperatura da sala. Há horas que não sabia o que era sentir-se fresco.

Estavam numa sala com um chГѓВЈo de mosaicos de mГѓВЎrmore brancos e pretos e um enorme candeeiro de cristal suspenso do tecto alto. Um corredor amplo e longo com vГѓВЎrias portas para outras salas levava ГѓВ  parte de trГѓВЎs da mansГѓВЈo. Uma escadaria larga atapetada de verde-escuro levava ao andar superior.

“Detesto incomodá-la assim…”, começou ele, mas ela interrompeu-o outra vez.

“Disparate. Não incomoda nada. Não pode escolher onde o seu carro se avaria, pois não?”

“Não”, suspirou ele. “Esperava que me deixasse usar o seu telefone para uma chamada rápida.”

“Até deixava, se tivesse um.”

“Vive aqui longe de tudo sem um telefone?”

“Se eu tivesse um telefone, as pessoas iam passar a vida a tentar ligar-me”, disse ela. “Já há demasiadas pessoas a tentar falar comigo. Prefiro estar um pouquinho inacessível.”

“Mas e se tem algum problema?”, insistiu ele. “Se precisar de contactar alguém?”

“Não tenho nenhuma dificuldade em entrar em contacto com quem quero”, disse ela. “E não há problema que eu e o meu pessoal não consigamos resolver.”

“Ah, tem pessoal. Assim sempre é melhor.”

“Yep. Aliás, eu ia sugerir que o meu motorista desse uma vista de olhos ao seu carro. Provavelmente saberá repará-lo.”

“Não quero dar-lhe incómodo...”

“Oh, não me incomoda nada. O Fritz é que vai fazer isso. É para isso que ele cá está.” Ela pegou no medalhão e falou na direcção dele. “Fritz, está um carro na estrada aqui em frente que parou de funcionar. Podes dar-lhe uma vista de olhos e ver se o consegues pôr a andar?”

“Sim, Fraulein”, disse uma voz vinda do medalhão. O sotaque alemão era tão cliché que quase que se podia ouvir o bater da continência do outro lado.

“Muito obrigado”, disse ele.

Ela virou-se para o encarar. “A propósito, o meu nome é Polly.”

"Ah, hum, olГѓВЎ. Eu sou o Rod."

Ela inclinou a cabeГѓВ§a para a esquerda. "Mas nГѓВЈo se parece nada com um "rod"1 (#litres_trial_promo).

"Como ГѓВ© um "Rod", entГѓВЈo?"

"Oh, longo, cilíndrico e duro." Ela fez um sorriso malicioso. "A menos que seja uma alcunha." Ele corou violentamente. "É, hum, é o diminutivo de Herodotus", disse baixinho. Ao mesmo tempo perguntou-se porque é que o tinha dito; era uma informação que ele quase nunca dava voluntariamente, muito menos a um estranho.

"Ah, o historiador grego!", exclamou Polly. "Que chique."

"Conhece?"

"Claro! Eu adoro a GrГѓВ©cia Antiga."

"Pois, o meu pai tambГѓВ©m. Era professor de cultura clГѓВЎssica."

"Ele devia gostar muito de si para lhe dar um nome tГѓВЈo nobre."

Herodotus fez um esgar de escГѓВЎrnio. "Herodotus Shapiro ГѓВ© um nome horrГѓВ­vel para dar a um rapaz judeu."

"Eu gosto. Vou tratar-te por “tu”. Importas-te que eu te chame "Hero2 (#litres_trial_promo)"?"

"Prefiro Rod, a sГѓВ©rio."

"Podes ser o meu Hero", disse ela, ignorando-o completamente. "Sempre ГѓВ© melhor que "Her3 (#litres_trial_promo)", nГѓВЈo achas?"

"Não me faz diferença", respondeu com resignação. Ele tinha de momento problemas muito mais prementes do que aquilo que uma miúda qualquer tola e rica lhe chamava. De momento, um desses problemas era conseguir tirar os olhos do corpo deslumbrante dessa miúda tola e rica e não se babar para o chão.

Ela meteu o braço no dele e levou-o em direcção à sala que ficava à direita. "Anda para a sala e junta-te à festa!"

"Festa?" Sentiu o peito subitamente apertado. Festas estavam cheias de gente normalmente muito bem disposta, e gente bem disposta era a ГѓВєltima coisa de que ele precisava neste momento. "Oh, eu nГѓВЈo queria vir ГѓВ  penetra..."

"NГѓВЈo conseguias vir ГѓВ  penetra nem que quisesses", disse-lhe Polly firmemente. Ele sentiu-se de repente muito consciente do facto de estar despenteado e transpirado da viagem. "Acho que nГѓВЈo ia estar ГѓВ  vontade. Muito provavelmente nГѓВЈo conheГѓВ§o ninguГѓВ©m..."

"NГѓВЈo te preocupes, vais dar-te lindamente. ГѓВ‰ tudo boa gente, nГѓВЈo convido ninguГѓВ©m que nГѓВЈo seja."

"Mas... hum... nem estou vestido para uma festa."

"Não te preocupes, todas as minhas festas são â€�venha-como-estiver’, muito informais. As pessoas são mais importantes para mim do que as roupas que trazem vestidas. Anda!"

Ela abriu as portas de correr e levou-o para um salГѓВЈo cheio de gente. Uma mГѓВєsica de fundo instrumental alegre estava a tocar enquanto as pessoas conversavam entre elas amigavelmente, e aqui e ali ouviam-se gargalhadas.

A alcatifa azul-claro estava coberta por dois tapetes persa com fundo azul-real. O papel de parede era num ton-sГѓВ»r-ton de riscas horizontais azul-pastel e azul-marinho que corriam entre o tecto e os rodapГѓВ©s altos. Havia um sofГѓВЎ estilo sГѓВ©c. XIX comprido em brocado azul, cinco cadeiras estofadas com um padrГѓВЈo de jacintos azuis em losangos sobre um fundo verde-lima e, ao fundo do salГѓВЈo, um piano de cauda azul-bebГѓВ©. Pequenas mesas de apoio de mogno em estilo antigo faziam sobressair a consola em meia-lua debaixo de um grande espelho de contornos biselados. No entanto, toda a gente estava de pГѓВ© a conversar; ninguГѓВ©m estava a fazer uso do elegante mobiliГѓВЎrio.

Ele examinou a multidГѓВЈo sem encontrar nenhuma cara conhecida. "Como ГѓВ© que conseguiste que todas estas pessoas viessem atГѓВ© tГѓВЈo longe para a tua festa?"

"Convidei-as", disse Polly simplesmente. "As pessoas gostam das minhas festas."

Ela carregou num botГѓВЈo do medalhГѓВЈo que tinha ao pescoГѓВ§o e um zumbido suave mas insistente soou no salГѓВЈo; os convidados interromperam as conversas para olhar para a porta.

"OlГѓВЎ a todos", disse ela. "Espero que estejam a divertir-se!" A maior parte das pessoas acenou com a cabeГѓВ§a, outros murmuraram afirmativamente.

"ГѓВ“ptimo!", disse Polly. "Se houver algum problema, digam-me. Quero apresentar a todos o meu Hero. Bem, na verdade o nome dele ГѓВ© Herodotus Shapiro, mas eu acho que Hero lhe cai como uma luva. Por favor, faГѓВ§am-no sentir-se bem-vindo!" Ouviu-se um breve aplauso vindo dos convidados, o que sГѓВі fez com que Herodotus ficasse ainda mais embaraГѓВ§ado.

Polly olhou para ele: "EstГѓВЎs com cara de quem precisa de uma bebida."

"NГѓВЈo costumo beber..."

"Só um copo de vinho. Fifi!", chamou ela. Uma bela rapariga loira, nova e vivaz vestida com uma farda branca e preta de garçonette aproximou-se segurando um tabuleiro com copos de vinho. O uniforme era muito reduzido e deixava pouco espaço à imaginação, em particular no que respeitava à perfeita perpendicularidade dos seus apêndices mamários. "Oui, mademoiselle?", perguntou ela.

Polly pegou com destreza em dois copos do tabuleiro, deu um a Herodotus e ficou com o outro. "Fifi, quero que te certifiques que o Hero tem tudo o que deseja."

A garГѓВ§onette olhou para Herodotus e sorriu. "Farei o meu melhor", prometeu ela, subitamente enrouquecida, com as ancas e os ombros a ondear como se corressem em eixos separados.

Polly ergueu entГѓВЈo o copo num brinde. "A novas amizades", disse, tocando com o copo dela no seu. Herodotus olhou para o lГѓВ­quido dourado no copo e provou-o; era delicioso - doce sem ser enjoativo, suave, refrescante e com uma nota tonificante e frutada. Bebeu mais um pouco, desta vez com prazer.

Ela observava-o com um sorriso. "Gostas?", perguntou.

"Sim, ГѓВ© muito bom."

"É das minhas vinhas", gabou-se ela. "Chama-se Satisfação, e é o vinho de uvas felizes. Estas vinhas estão mesmo ao lado de umas onde tenho as uvas da ira. Guardo este vinho para ocasiões especiais."

"Olha, Polly, eu..."

"Desculpa ter de te abandonar por algum tempo, mas tenho de ir tratar dos outros convidados. Sabes como é, deveres de anfitriã... Mete conversa com as pessoas, diverte-te. Se precisares de alguma coisa, a Fifi e o James estão à tua disposição."

"Quem ГѓВ© o James?"

"O meu mordomo. NГѓВЈo demoro muito. Depois podemos falar." Ela bebeu um pouco do vinho e misturou-se com os outros convidados, coleccionando sorrisos de todos com quem falava, atГѓВ© desaparecer na multidГѓВЈo.

Herodotus sentiu-se muito deslocado e sГѓВі. Toda a gente tinha um ar amigГѓВЎvel, ГѓВ© certo, mas ele nГѓВЈo estava a sentir-se particularmente sociГѓВЎvel - nГѓВЈo hoje. Dirigiu-se ao sofГѓВЎ, sentou-se tГѓВЈo levemente quanto pode numa das extremidades por respeito ГѓВ  sua ГѓВіbvia antiguidade e tentou passar tГѓВЈo despercebido quanto possГѓВ­vel.

Passados alguns minutos, um homem aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Aparentava estar perto dos setenta anos, com uma cara magra de pele enrijecida pelas intempГѓВ©ries e cabelo branco-neve no alto de uma testa com entradas profundas. Era magro com uma barriga algo proeminente e tinha a face enrugada, mas simpГѓВЎtica. Havia ali muitas linhas de sorriso.

"HГѓВЎ quanto tempo a conhece?", perguntou o homem com bons modos.

"Quem? Polly?"

"ГѓВ‰ esse o nome que ela usa agora? Sim, Polly."

"Encontrei-a pela primeira vez hГѓВЎ uns minutos."

O homem acenou com a cabeça. "Eu conheço-a há cinco anos. Eu e a minha mulher estávamos casados há quarenta e três anos, e ela nunca tinha estado doente um dia que fosse, à excepção de um espirro de vez em quando. Um dia a Alice foi ao hospital, e três semanas depois morreu com cancro. Todo o meu mundo colapsou, e eu pensei que mais valia morrer e ir ter com ela. Foi aí que uma enfermeira veio ter comigo na sala de visitas e me consolou. Eu não sou o tipo de homem que chora, mas nesse dia chorei no ombro dela como uma criança - molhei-lhe a farda toda. Mas ela não se importou. Contei-lhe tudo sobre a Alice, devemos ter passado horas a falar. Sabe, alguns amigos tinham tentado consolar-me dizendo que a Alice tinha ido para um lugar melhor, mas a Polly nunca me tentou convencer de nenhum desses disparates. Ela esteve simplesmente ali, presente, e isso foi o suficiente; e algum tempo depois o resto do mundo também passou a estar presente - mais vazio sem a Alice, mas com mais esperança do que eu tinha tido até aí."

Ele parou por um momento, e perguntou: "E qual ГѓВ© a sua histГѓВіria?"

Herodotus corou. Depois de uma histГѓВіria como aquela, o que ГѓВ© que ele podia dizer? "O meu carro avariou-se em frente aqui ГѓВ  casa", respondeu ele, quase em tom de desculpa.

O velho olhou para ele por uns momentos com um sorriso quase imperceptГѓВ­vel nos lГѓВЎbios, e acabou por se levantar. "Certo", disse, esticando o braГѓВ§o e dando uma palmada amigГѓВЎvel nas costas de Herodotus. "Lembre-se, como Polly sempre diz, nada estГѓВЎ perdido enquanto houver esperanГѓВ§a." E foi-se embora.

Herodotus tomou mais um pouco do vinho e observou os convidados. ApГѓВіs alguns minutos, um homenzinho com um ar de fuinha, vestido com um fato cinzento e com uma camisa branca perfeitamente engomada e um laГѓВ§o vermelho ao pescoГѓВ§o, aproximou-se do sofГѓВЎ. Em vez de se sentar nele, deu a volta atГѓВ© estar por trГѓВЎs de Herodotus e inclinou-se para lhe murmurar ominosamente ao ouvido: "Sai daqui enquanto podes."

"Como?"

"Ouviste-me bem. Sai daqui antes que seja tarde demais", e afastou-se sem mais explicações.

Herodotus perguntou-se em que toca de coelho tinha caГѓВ­do enquanto via o homem afastar-se. Ele nГѓВЈo tinha escolha senГѓВЈo ficar - a menos que quisesse caminhar oitenta quilГѓВіmetros pelo calor escaldante do deserto.

Pelo meio da multidão andava descontraidamente um gato preto de pelo comprido e olhos dourados brilhantes. Com deliberação felina, veio até ao sofá, examinou Herodotus com atenção, e saltou-lhe para o colo; Herodotus afagou-o levemente. O gato não levantou objecções e começou a ronronar, dando-lhe palmadinhas nas coxas com as patas macias.

Polly regressou nesta altura, desta vez vestida com um body de lantejoulas com riscas verticais vermelhas e brancas e debruado a azul com estrelas tambГѓВ©m brancas numa fila vertical ao longo do peito e da anca. Os ombros, braГѓВ§os e pernas estavam nus, e nos pГѓВ©s trazia sapatilhas de ballet.

"Ah, encontraste o Midnight", sorriu Polly.

"Acho que ele ГѓВ© que me encontrou a mim", disse Herodotus.

"Estou a ver que estГѓВЎs habituado a ver as coisas de uma perspectiva felina."

"JГѓВЎ tive alguns gatos", admitiu ele.

"Isso agrada-me. Os gatos sГѓВЈo a prova viva que Deus estava a brincar quando disse que nГѓВЈo devГѓВ­amos ter mais nenhum deus para alГѓВ©m dele." Ela baixou-se e afagou por sua vez o gato, que ronronou ainda mais alto.

Polly saltou para o sofá ao lado dele, deu uns quantos saltos com toda a distinção e boas maneiras de uma criança de dez anos com excesso de energia, e acabou sentada de lado, de pernas cruzadas, a olhar para ele. O gato nem estremeceu. "E agora, do que é que havemos de falar?", perguntou ela.

Herodotus abanou a cabeГѓВ§a. "NГѓВЈo estou com vontade de falar. SГѓВі quero arranjar o meu carro e pГѓВґr-me a caminho."

A voz de Polly soou compassiva. "EstГѓВЎs com problemas, hein?"

"Eu disse que não queria falar sobre isso", disse ele num tom mais brusco do que tinha sido a sua intenção.

"Tudo bem", disse ela, agora a fazer festas ao gato. "Então podemos falar do meu tema favorito – a minha pessoa. Faz-me perguntas, vejo na tua cara que estás cheio delas. Pergunta-me o que quiseres. Estou muito bem disposta, e assim dou-te uma oportunidade única pela qual alguns homens dariam a própria vida."

Era ГѓВіbvio que ela nГѓВЈo ia deixГѓВЎ-lo em paz, por isso mais valia fazer-lhe a vontade. "Cultivas muitas flores aqui?"

Ela ficou espantada e confusa por alguns segundos. "Tenho de admitir que não me perguntam isso muitas vezes. Normalmente vêm coisas do género â€�qual é o sentido da vida’ ou â€�porque é que isto tinha que me acontecer a mim’. É verdade que tenho um canteiro no jardim das traseiras, mas não é maior do que os jardins de Versailles. Porque perguntas?"

"Bem, quando eu entrei disseste: â€�Bem-vindo à Estufa4 (#litres_trial_promo)’."

Polly riu-se; e o riso dela soava como um espanta-espíritos a tilintar numa brisa suave, um som que enchia a sala de brilho, que era a própria essência da alegria. "Não é â€�Estufa’, é â€�Casa Verde’. Por causa da cor."

"A casa ГѓВ© branca."

"OK, mas â€�Casa Branca’ já está ocupado5 (#litres_trial_promo), topas?"

Herodotus fechou os olhos. Era como se o cГѓВ©rebro dele tivesse acabado de entrar num banco de nevoeiro. "NГѓВЈo sei se isso faz alguma espГѓВ©cie de sentido."

"Sentido? Não havia nada sobre â€�sentido’ no contrato. Népias. Nem sobre â€�justo’, já agora, nem mesmo nas letras miúdas. Eu li-o todo."

Herodotus estava a comeГѓВ§ar a achar que Polly vivia sozinha hГѓВЎ demasiado tempo. Estava mesmo para se levantar e dizer que esperava lГѓВЎ fora quando o mordomo se aproximou do sofГѓВЎ. Era um homem alto de smoking, o cabelo a rarear e jГѓВЎ branco nas fontes, que mantinha uma pose de superioridade e trazia uma bandeja de prata com canapГѓВ©s na mГѓВЈo direita. Ele baixou a bandeja com elegГѓВўncia para que Herodotus pudesse examinar o seu conteГѓВєdo e disse, com um sotaque britГѓВўnico quase aristocrГѓВЎtico: "Aperitivos?"

"Obrigada, James", disse Polly, pegando num canapГѓВ© de aspecto invulgar e olhando para Herodotus. "Apetece-te alguma coisa?"

Ele olhou para a bandeja. Na maior parte das festas a que ele tinha ido tinha havido batatas fritas, ou Doritos e snacks do gГѓВ©nero, ou taГѓВ§as de frutos secos e miniaturas, mas nenhum destes canapГѓВ©s lhe era familiar. "Hum, o que ГѓВ© que recomendas?"

"Oh, sГѓВЈo todos ГѓВіptimos", disse Polly. "Eu ГѓВ© que os fiz."

Herodotus escolheu entГѓВЈo um que parecia uma pequena flor vermelha e castanha numa bolacha. Experimentou dar uma dentada; combinava um sabor doce com um sabor salgado. "Isto ГѓВ© muito bom!", disse ele, enquanto acabava o resto.

"Bom, nГѓВЈo precisas de ficar tГѓВЈo admirado", disse Polly.

"O que ГѓВ©?"

"Depois de semelhante resposta, nГѓВЈo me parece que te vГѓВЎ dizer. James, nГѓВЈo precisamos de mais nada."

"Com certeza, senhora." O mordomo endireitou-se e continuou a servir os outros convidados.

Polly observou Herodotus enquanto ele acabava de mastigar o resto do canapГѓВ© e disse: "Onde ГѓВ© que ГѓВ­amos?"

"Acho que nГѓВЈo ГѓВ­amos a lado nenhum."

"JГѓВЎ sei, tu estavas a fazer-me perguntas profundas e inteligentes. VГѓВЎ, mal consigo esperar pela prГѓВіxima."

Herodotus acabou o vinho para ganhar algum tempo e decidiu, com um suspiro, falar naquilo que estava a incomodГѓВЎ-lo; bem, numa das coisas que estava a incomodГѓВЎ-lo. Polly nГѓВЈo parecia ofender-se com perguntas directas.

"Sabias", perguntou ele incisivamente, "que tens um boneco de neve no teu jardim da frente?"

"O McCool? Pensei que estivesse no quintal. Deve ter ido para o jardim para poder ver os carros a passar, ele gosta disso."

Isto deixou-o embasbacado. "EstГѓВЎs a gozar."

Ela fez um grande sorriso, um sorriso que iluminou a sala como um raio de luz. "Claro que estou, tonto", disse ela, esticando o braço e pondo-lhe a mão no joelho num gesto de simpatia. "O McCool não pode ir para lado nenhum, ele não tem pernas! Isso foi sempre o que me fez confusão com o Frosty, aquele boneco da canção, sabes? Como raio é que ele adorava dançar quando bonecos de neve não têm pernas nem pés? Mas a canção é gira6 (#litres_trial_promo)."

O toque dela deu-lhe no joelho um choque de... algo. NГѓВЈo era de calor, embora ele estivesse quente, mesmo com o ar condicionado; nГѓВЈo era electricidade, embora ele sentisse todo o corpo num formigueiro. Nem era desejo, embora o que ela trazia vestido o deixasse muito consciente da sua feminilidade. Era... outra coisa qualquer, e era decididamente uma coisa boa.

Ele comeГѓВ§ou a dizer "Mas como...", quando ela o interrompeu. "Lamento, senhoras e senhores, o tempo para as questГѓВµes da audiГѓВЄncia terminou. Talvez mais tarde, se te portares bem, mas agora jГѓВЎ devia estar a fazer exercГѓВ­cio, que era o que eu estava para comeГѓВ§ar a fazer quando tu apareceste. DaГѓВ­ estas roupas. Anda fazer-me companhia para o ginГѓВЎsio."

"E os teus convidados?"

"NГѓВЈo te preocupes com isso, eles ficam bem por um bocadinho. O James e a Fifi encarregam-se deles."

"Eu nГѓВЈo faГѓВ§o muito exercГѓВ­cio", disse Herodotus, sem acrescentar que, na opiniГѓВЈo dele, a ГѓВєnica coisa pior do que fazer exercГѓВ­cio era ver outra pessoa a fazГѓВЄ-lo. "Vai sem mim, eu fico aqui a fazer festas ao gato ГѓВ  espera que o motorista arranje o meu carro."

"Nem penses nisso!", disse ela, saltando do sofá e agarrando-lhe no braço. Midgnight tomou isto como um sinal para saltar do colo de Herodotus e ir-se embora. "Eu adoro exibir-me", continuou Polly, "e não posso exibir-me se estiveres aqui em baixo." Ela puxou-o para longe do sofá. "Considera isto como retribuição pela minha hospitalidade."

Ele percebeu que ela era o mais parecido com a ForГѓВ§a IrresistГѓВ­vel que ele alguma vez iria encontrar, e por isso deixou-a guiГѓВЎ-lo para fora do salГѓВЈo e pelo corredor central atГѓВ© ГѓВ  parte de trГѓВЎs da casa. Afinal, pensou ele, havia certamente maneiras piores de passar o tempo do que a olhar para uma rapariga bonita a suar num body justo.

Quando chegaram ao fim do corredor jГѓВЎ estava um elevador com a porta aberta ГѓВ  espera deles. Polly carregou no botГѓВЈo para o terceiro andar, e Herodotus viu que havia botГѓВµes atГѓВ© ao nГѓВєmero treze, e ainda um marcado "R".

"Eu ia jurar que a casa sГѓВі tinha dois andares", disse ele quando as portas do elevador fecharam. Nesse momento, o elevador disparou com uma velocidade a que nenhum elevador bom do juГѓВ­zo se teria atrevido. Herodotus sentiu-se como se os joelhos estivessem prestes a ultrapassar-lhe o queixo e sair pela cabeГѓВ§a, e o estГѓВґmago parecia ter ficado no rГѓВ©s-do-chГѓВЈo.

"Oh, deves ter visto sГѓВі a frente", disse Polly sem dar grande importГѓВўncia ГѓВ  pergunta implГѓВ­cita. "As traseiras sГѓВЈo muito maiores. ChegГѓВЎmos."

O elevador parou tão abruptamente que deixou o pobre Herodotus a sentir-se como gelatina. Quando as portas se abriram, ele viu o que parecia o corredor de um hotel luxuoso com portas de ambos os lados. Não havia números nas portas nem nenhuma indicação do que estava atrás de cada porta; à excepção de que uma delas era verde.

Despachada e ligeira, Polly seguiu pelo corredor. Desta vez nГѓВЈo teve de puxar Herodotus pela mГѓВЈo; aquela viagem de elevador tinha-o deixado com os nervos em franja e ele nГѓВЈo tinha vontade nenhuma de ficar para trГѓВЎs, perdido nesta mansГѓВЈo cada vez mais confusa.

Ela parou ao chegar ГѓВ  porta verde. "NГѓВЈo podes entrar aqui", disse.

"Porque ГѓВ© que eu quereria entrar aqui?"

"Porque ГѓВ© proibido", disse ela ominosamente. "Eles querem sempre entrar quando eu digo que ГѓВ© proibido." Ela continuou a andar e parou em frente a uma porta do lado esquerdo mais ou menos a meio do corredor. "Isto ГѓВ© o ginГѓВЎsio", disse ela. "Entra!"

Era um salão grande, tão grande como um ginásio de uma escola, e não era propriamente aquilo que Herodotus estava à espera. Não se via nenhuma passadeira de corrida, nem bicicleta fixa, nem elíptica, nem máquina de musculação, nenhuma da parafernália do costume. Em vez disso via-se uma mesa de salto, barras paralelas, um trapézio, uma corda bamba esticada a dois metros e meio de altura, e muitos tapetes cinzentos de ginástica espalhados pelo chão.

"Então és acrobata?", perguntou Herodotus, com alguma hesitação na voz.

"SГѓВі firrosoficamente", disse ela a parodiar um sotaque chinГѓВЄs.

Herodotus estava confuso, e isso via-se claramente na sua expressГѓВЈo.

"Tu tens de ter visto o Tony Randall no â€�As sete faces do Dr. Lao’", disse Polly, em tom de pergunta. Quando Herodotus abanou a cabeça, ela exclamou: "Oh, mas tens de ver! Dirigido por George Pal, com guião de Charles Beaumont, é um filme que merece ser beatificado!" Ela voltou então ao assunto presente. "A ginástica acrobática é um excelente exercício e ajuda-me a manter esta figura jovem e esbelta que tens estado a admirar sempre que pensas que eu não dou conta."

Herodotus corou, mas na voz de Polly sГѓВі se ouvia orgulho quando disse: "Olha para isto."

Havia uma corda ao lado do trapГѓВ©zio por onde ela trepou atГѓВ© chegar ГѓВ  barra e pendurar-se nela. ComeГѓВ§ou entГѓВЈo a balanГѓВ§ar, cada vez mais alto, atГѓВ© que, num movimento fluido, deu um salto mortal no ar, enganchando os joelhos na barra. Ergueu-se entГѓВЈo, devagar, primeiro atГѓВ© estar sentada, depois atГѓВ© estar em pГѓВ© com os pГѓВ©s afastados. Herodotus comeГѓВ§ou a aplaudir, mas ela interrompeu-o. "Oh, isto nГѓВЈo ГѓВ© nada", disse ela com um toque quase imperceptГѓВ­vel de impaciГѓВЄncia na voz. "Guarda o aplauso para o fim do espectГѓВЎculo."

Inclinando-se para a frente, deixou-se cair enquanto se curvava pela cintura para agarrar de novo o trapézio com ambas as mãos. O impulso levou-a a dar uma volta completa à barra, no fim da qual ela abriu as pernas no ar e ficou de cabeça para baixo. Aguentou esta posição sem tremer nem deslizar por uns bons quinze segundos, até que subitamente se soltou, caindo em queda livre e, no último segundo, enganchando os tornozelos nos extremos da barra, onde as cordas a prendiam. Movimentou então a perna esquerda lentamente para o lado e ficou com o pé esquerdo suspenso no ar.

Manteve esta posição por alguns segundos, só para provar que não era por acaso que estava pendurada apenas pelo tornozelo direito numa barra de trapézio, após o que se dobrou sobre a cintura sem qualquer esforço para novamente se agarrar com ambas as mãos. Inclinando-se para a frente e para trás, fez o trapézio balançar, cada vez mais alto com cada arco desenhado. Ao atingir o ponto mais alto de um dos lados, largou então o trapézio e atirou-se em voo pelo ar, enrolou-se sobre si própria e deu dois saltos mortais antes de se esticar de novo e aterrar, em perfeito equilíbrio, no centro da corda bamba.

"Nada de aplausos, por favor", lembrou ela, "mas não tenho nada contra um pequeno suspiro de admiração nesta altura." Mas sem esperar por ele, começou a andar para um lado e outro ao longo da corda, tão segura como se estivesse a andar no chão. Ao aproximar-se do centro da corda, dobrou os joelhos e deu um salto mortal para trás, e outro, e um terceiro, aterrando de cada vez de pé em perfeita segurança.

"Agora chegou a altura de a audiГѓВЄncia participar nos jogos", disse ela. "EstГѓВЎ ali um monociclo. Podes passar-mo, por favor?"

Herodotus foi buscar o monociclo e passou-lho. Sem se preocupar a agradecer-lhe, ela equilibrou a roda na corda e montou com cuidado, comeГѓВ§ando entГѓВЈo a pedalar ao longo do fio, para um lado e para o outro.

Uma vez chegando de novo ao centro da corda, ela parou, continuando a equilibrar-se no monociclo, e pediu: "Chega-me aquela vara e o prato." Herodotus obedeceu.

A vara tinha quase um metro de comprimento e cerca de centГѓВ­metro e meio de diГѓВўmetro. Ela pegou-lhe pelo meio, equilibrou o prato na ponta e fГѓВЄ-lo girar com forГѓВ§a; e, dando ainda mais impulso com a mГѓВЈo, fГѓВЄ-lo girar cada vez mais depressa. Quando ficou satisfeita com a velocidade do prato, pegou na vara com as duas mГѓВЈos, inclinou a cabaГѓВ§a para trГѓВЎs e equilibrou a ponta livre na testa. Afastou entГѓВЈo as mГѓВЈos atГѓВ© os braГѓВ§os estarem esticados na perpendicular ao corpo e comeГѓВ§ou a pedalar para a frente e para trГѓВЎs em cima da corda.

"É agora que eu te conto o grande segredo do Universo", disse ela, sem tirar os olhos do prato. "Toda a sabedoria das civilizações condensada numa única palavra: equilíbrio. Mantém-te em equilíbrio e o mundo é a tua ostra. Assumindo que gostas de ostras, bem entendido, senão a metáfora não funciona."

Ela continuou a equilibrar a vara na testa por mais um minuto inteiro. Pegou entГѓВЈo nesta com a mГѓВЈo direita, tirou-a da testa e deixou-a cair ao chГѓВЈo. Apanhando no mesmo movimento o prato com a mГѓВЈo esquerda, olhou para Herodotus, dizendo: "Apanha!", enquanto lho atirava, mas permanecendo no monociclo em cima da corda, pedalando para a frente e para trГѓВЎs completamente ГѓВ  vontade.

Finalmente, ela desmontou do monociclo com tanta facilidade como tinha montado, e devolveu-o a Herodotus. Curvando-se pela cintura, agarrou a corda, deu uma cambalhota, deixou cair as pernas atГѓВ© ficar pendurada sГѓВі pelas mГѓВЈos, e saltou graciosamente para o tapete no chГѓВЈo, os braГѓВ§os ainda erguidos em triunfo.

"OK, agora jГѓВЎ podes aplaudir", disse ela.

Herodotus jГѓВЎ tinha passado a fase do aplauso hГѓВЎ muito. Apesar do seu mau humor geral, disse entusiasmado: "Isto foi absolutamente fabuloso! ГѓВ‰s acrobata profissional?"

Polly baixou os braГѓВ§os e fez uma vГѓВ©nia. "Nunca me pagaram para isto, portanto acho que nГѓВЈo passo de uma amadora cheia de talento. Mas gosto de praticar na mesma. Tens fome? Fico sempre esfomeada depois de um exercГѓВ­cio funambulesco."

O pequeno-almoГѓВ§o jГѓВЎ lГѓВЎ ia hГѓВЎ muito tempo, e nГѓВЈo se podia dizer que aquele canapГѓВ© tivesse propriamente saciado Herodotus, mas ele nГѓВЈo quis pedir mais nada directamente. "Odeio incomodar assim, jГѓВЎ fizeste tanto..."

"NГѓВЈo hГѓВЎ problema. Vou pГѓВґr o Mario a preparar-nos qualquer coisa."

"Hum, importavas-te que eu usasse a casa de banho para me refrescar antes de comermos?"

"Ora essa! Antes isso do que usares um dos cantos da sala. Anda daГѓВ­." Ela conduziu-o de novo para o corredor: "ГѓВ‰ a segunda porta ГѓВ  esquerda daquele lado, mas nГѓВЈo entres na porta verde! Quando acabares, apanha o elevador para o rГѓВ©s-do-chГѓВЈo, encontramo-nos lГѓВЎ."

Ele chegou ГѓВ  casa de banho, entrou, fechou a porta, encostou-se a ela e fechou os olhos. Era bom ter pelo menos uns minutos de privacidade. Polly era muito bonita e muito simpГѓВЎtica, mas tambГѓВ©m muito... intensa. Sim, era essa a palavra. Intensa.

Deu um suspiro profundo, abriu os olhos... e voltou a fechГѓВЎ-los. NГѓВЈo o surpreendia que Polly nГѓВЈo tivesse uma casa de banho normal, mas esta ultrapassava tudo aquilo que ele podia ter imaginado.

Abriu os olhos de novo para apreciar o espectГѓВЎculo. O papel de parede e o tecto formavam uma ilusГѓВЈo de ГѓВіptica do que parecia ser uma enorme catedral, talvez atГѓВ© a Abadia de Westminster. A divisГѓВЈo jГѓВЎ era, em si, maior do que uma casa de banho normal, o que ajudava ao efeito.

A sanita era, literalmente, um trono - uma peГѓВ§a elaborada esculpida em madeira escura de carvalho com embutidos de marfim e pedras preciosas. Os apoios de braГѓВ§os terminavam em esculturas de cabeГѓВ§as de leГѓВЈo e os quatro pГѓВ©s eram garras fincadas em esferas. As costas estavam estofadas com veludo cor-de-vinho e havia um raio de luz a incidir na tampa que parecia vir de um vitral algures no tecto. Havia um rolo de papel higiГѓВ©nico num suporte discreto num dos lados da escultura.

Ele foi atГѓВ© ao trono e levantou cuidadosamente a tampa, constatando com alГѓВ­vio que o interior era o de uma sanita normal. Aliviou-se entГѓВЈo, apГѓВіs o que, como a mulher - em breve ex-mulher, pensou ele - o tinha treinado, fechou de novo a tampa. Ao curvar-se para o fazer, reparou que o papel higiГѓВ©nico era fora do vulgar, e esticou-se para lhe tocar.

NГѓВЈo era papel. Era seda.

Ele foi atГѓВ© ao lavatГѓВіrio, que se parecia muito com uma pia baptismal octogonal que ele tinha visto durante uma visita guiada de igrejas antigas. O ralo e as torneiras eram feitos de ouro maciГѓВ§o e, quando as abriu, a ГѓВЎgua que jorrou tinha um aroma ligeiro a rosas. Os sabonetes tinham a forma de pequenos cisnes, e as toalhas individuais para as mГѓВЈos eram de linho e dobradas em origami com a forma de cisnes.

Ele olhou para o próprio reflexo no espelho enquanto lavava as mãos. "Em que é que me meti?", perguntou-lhe ele em voz baixa. "Será que isto é uma versão ainda mais surreal do â€�Hotel California’? Quem é esta rapariga, o que é este lugar?" Mas o seu reflexo não tinha respostas, e por isso ele secou as mãos e saiu para o corredor.

O elevador estava à espera dele de portas abertas quando ele chegou ao fundo do corredor. Carregou no "R/C" com algum receio, e o elevador disparou pelo poço abaixo como se o cabo tivesse rebentado, parando depois súbita mas gentilmente. "Isto dava uma atracção fantástica num parque de diversões", murmurou de si para si. Saiu então para o corredor do rés-do-chão, mas não havia sinal de Polly, e portanto ele ficou à espera.

Foi quando de uma das portas entrou, no corredor, num passo descontraГѓВ­do, um leГѓВЈo, grande e com uma enorme e bela juba. Herodotus gelou por dentro; e comeГѓВ§ou a recuar lentamente, afastando-se do animal. As portas do elevador tinham-se fechado nas suas costas, mas ele encostou-se a elas com tanta forГѓВ§a quanto pode. O leГѓВЈo olhou de relance para ele, e ele reparou que ele era ligeiramente vesgo. Ignorando-o entГѓВЈo, afastou-se e entrou noutra porta mais ГѓВ  frente.

ApГѓВіs alguns segundos Herodotus apercebeu-se de que se tinha esquecido de respirar. ComeГѓВ§ou entГѓВЈo a inspirar profundamente para tentar acalmar os nervos.

Polly apareceu vinda de outra porta. Tinha mudado de roupa de novo, e trazia agora umas calças de ganga justas, sapatilhas e uma T-shirt branca que dizia â€�I believe in me!’ em grandes letras azuis na frente. Mesmo com um conjunto tão simples ela ficava imensamente sexy.

"HГѓВЈГўВЂВ¦", disse ele hesitante, "tens um leГѓВЈo a passear pela tua casa."

"Oh, ГѓВ© o Bert. NГѓВЈo lhe ligues. Ele tem mais medo de ti do que tu dele."

Mas para Herodotus tinha acabado o tempo das subtilezas. Encarou-a, olhos nos olhos, e disse: "Mas quem ГѓВ©s tu, exactamente?"

Ela respondeu com uma expressГѓВЈo algo confusa: "JГѓВЎ te disse isso. Sou a Polly."

"Polly quГѓВЄ?"

"Polly QuГѓВЄ o quГѓВЄ?"

"Qual ГѓВ© o teu apelido."

"NГѓВЈo, Qual nГѓВЈo ГѓВ© o meu apelido."

"Muito engraГѓВ§ado", disse ele irritado. "Diz-me o teu ГѓВєltimo nome."

"Preciso absolutamente de ter um?"

"Toda a gente tem um apelido."

"Cher. Madonna. Prince."

"Isso sГѓВЈo nomes artГѓВ­sticos. Eles tГѓВЄm um nome legal, com apelido."

"Talvez Polly seja o meu nome artГѓВ­stico."

"EstГѓВЎs em palco, entГѓВЈo?"

"Constantemente", disse ela, agora a comeГѓВ§ar a soar aborrecida.

"O que eu quis dizer..."

"Pois podes meter a viola no saco!" Os olhos dela brilharam subitamente de fГѓВєria. "Como ГѓВ© que te atreves a entrar por aqui adentro como se tivesses o rei na barriga e interrogar-me como se eu fosse uma criminosa? Tens uma lanterna no bolso ou estГѓВЎs contente por me ver? O que ГѓВ© que te interessa qual ГѓВ© o meu apelido, ou se eu tenho sequer um? JГѓВЎ nГѓВЈo ГѓВ©s bem vindo aqui. Sai da minha casa imediatamente!"

Herodotus foi apanhado de surpresa por esta mudança súbita de disposição. "Mas..."

"Nada de â€�mas’. Sai. Imediatamente!" E apontou zangada para a porta da frente da casa.

E depois bateu o pГѓВ©. O chГѓВЈo tremeu.

HГѓВЎ um jogo muito popular entre os californianos: adivinhar o grau da escala de Richter de um terramoto sempre que sentem um. Quase inconscientemente, ele avaliou este como um pequeno terramoto, algures entre o trГѓВЄs e o quatro da escala.

Mas ele não teve tempo para pensamento consciente, porque Polly avançou em direcção a ele, os olhos acesos com ira. Ele virou-se então e foi em passo rápido até à entrada, abriu a porta e saiu para o alpendre. Polly foi atrás dele e atirou com a porta da rua, fechando-a com um estrondo.

"Bem, isto podia ter corrido melhor", murmurou ele de si para si.

Ali, de pГѓВ©, no meio do calor ardente do deserto, olhou para a estrada onde o carro dele tinha avariado. Por um momento esperou ver o motorista de Polly a trabalhar nele, com o chГѓВЈo cheio de peГѓВ§as desmontadas do motor. Mas nГѓВЈo havia nada: nem carro, nem motorista, nem peГѓВ§as.

Herodotus olhou primeiro para a estrada, incrГѓВ©dulo, depois para a porta da mansГѓВЈo atrГѓВЎs dele, subitamente intimidante. Abanando vigorosamente a cabeГѓВ§a, desceu lentamente os degraus da entrada e aproximou-se do boneco de neve, que ainda nГѓВЈo mostrava nenhum sinal de derreter ao sol.

"OlГѓВЎ, McCool", disse ele. "O meu nome ГѓВ© Herodotus, mas podes chamar-me Rod. O que ГѓВ© que se passa com a Polly? Parecia tГѓВЈo simpГѓВЎtica, e depois atira-se a mim e expulsa-me de casa dela. E ГѓВ© tГѓВЈo bonita que nГѓВЈo consigo tirar os olhos dela. Mas ГѓВ© tГѓВЈo esquisita. VГѓВЄ-se que tem dinheiro, que tem talento, mas nГѓВЈo parece querer ou reivindicar absolutamente nada, excepto aquilo do apelido. Pergunto-me o que estarГѓВЎ por detrГѓВЎs dessa histГѓВіria..."

"E ГѓВ© tГѓВЈo misteriosa. Tantas coisas estranhas acontecem ГѓВ  volta dela e ela nГѓВЈo parece dar conta de nada. Tu, por exemplo. Sem ofensa, McCool, mas, por todas as leis naturais, tu nem devias estar aqui. E, no entanto, aqui estГѓВЎs. Ou uma casa maior nas traseiras do que na frente. Eu vi a casa quando me aproximei a primeira vez - toda a casa tem dois andares! LeГѓВµes a passear pelos corredores... E agora estou aqui abandonado: nГѓВЈo tenho carro e nГѓВЈo posso andar quilГѓВіmetros pelo deserto. SГѓВі me resta falar com bonecos de neve."




Конец ознакомительного фрагмента.


Текст предоставлен ООО «ЛитРес».

Прочитайте эту книгу целиком, купив полную легальную версию (https://www.litres.ru/pages/biblio_book/?art=40850381) на ЛитРес.

Безопасно оплатить книгу можно банковской картой Visa, MasterCard, Maestro, со счета мобильного телефона, с платежного терминала, в салоне МТС или Связной, через PayPal, WebMoney, Яндекс.Деньги, QIWI Кошелек, бонусными картами или другим удобным Вам способом.



Если текст книги отсутствует, перейдите по ссылке

Возможные причины отсутствия книги:
1. Книга снята с продаж по просьбе правообладателя
2. Книга ещё не поступила в продажу и пока недоступна для чтения

Навигация